António Afonso
Toze

O Tozé (António José Afonso) é meu pai.
Esta edição fica a dever-se à vontade do meu pai. Em memória dele cumpro o seu desejo. Sempre me disse: «O Pessoa deixou uma arca, eu deixo-te uma pastinha». Depois tu, se te apetecer, publicas.» À minha avó ele dizia que escreveria três livros: o da adolescência (este), outro na maturidade, o último um grande romance que pudesse dar prazer a milhões de pessoas, em que, na velhice, faria um relato do humano.
Sempre o ouvi dizer que estava destinado a escrever uma literatura da felicidade, mas que até então só conseguira escrever na dor. Feliz, preferia berrar gritos metafísicos nos bares e embriagar-se com os amigos. Sobre as Histórias de Amor e de Obsessão, tentou inúmeras vezes explicar-me que pretendera descrever as relações que vão vir e que o tema do livro era a possibilidade de dizer tudo. Quando o acabou, deu-o a ler à minha tia e perguntou-lhe: «Tu publicavas?» Ela disse que sim. O meu avô disse-lhe: «Ó filho, publica, mas não ponhas o Afonso.»
O Tozé sempre se pretendeu um agitador. Colocava a escrita, o discurso e a acção no mesmo plano. No Liceu Camões um trabalho de Filosofia sobre o individualismo proclamou que era Deus e escreveu estrofes e um manifesto em que ridicularizava o reitor. Escreveu também duas peças de teatro, uma oficial, para o Cabeça de Martelo (o reitor) ler, outra, clandestina, que ensaiava com os amigos no escritório do meu avô, destinada a ser realmente representada na festa de finalistas. Foi denunciado e expulso. O meu avô sempre o apoiou e protegeu.
Outra coisa que toda a vida fui obrigada a escutar é que ele nunca se sentiu um revoltado, sempre amou a sociedade e sempre sonhou que tudo se tornasse cada vez mais complexo e contraditório. Este livro afirma-o e não há nele nenhum ambiente português ou de sofrimento da ditadura. Foi escrito por um homem que desde os 18 anos viveu em democracia. Sempre se proclamou um «euro-esquerdista liberal (psicótico-libertino)». Em Direito berrou: «Hoje, aqui, proclamo a greve eterna» (voltou a ser expulso e condenado à revelia na Boa-Hora a 15 meses de prisão). Muitos anos mais tarde, slogava, como ele dizia, «Contra o sacrista Gugu (Guterres), votar Dudu, votar Dudu (Durão Barroso)!»A frase de Maio que mais o apaixonou foi «A liberdade é o crime que contém todos os crimes: é a nossa arma absoluta.»
Embora ultra-pacífico e sempre jocoso, foi sempre um belicista. Esteve com a intervenção anglo-americana no Iraque, antes disso com o «sagrado bombardeamento da Nato na Jugoslávia». Os amores políticos dele eram Olaf Palme, Willy Brandt, Helmut Schmidt, Vaclav Havel, Blair e Sarkozy. Citando Mário Neves, dizia: «Eu nunca mudei!» Também sempre o ouvi assumindo-se como jesuíta, republicano e democrata-radical. Teve medo de que as Histórias de Amor e de Obsessão fossem datadas. Recusou duas editoras. «Farei uma edição de autor luxuosíssima, a preço de custo, com capa do Jorge Varanda, cuja pintura diz o que diz a minha literatura.»
Os textos dele, para mim, são uma seca, excepto alguns em que se exprime «em fórmulas diamantinas que logo fazemos nossas», como disse um amigo dele o Carlos Bandeira de Lima. Herdei dele e do meu avô, espero, a palavra sem compromissos, a tolerância de tudo, a vontade de tudo integrar, a dúvida e a certeza levadas ao extremo do risco pessoal. Agradeço do fundo do coração à Rosa Oliveira e ao meu marido Torge Mönch, que sem grande conhecimento do Português, trabalhou que nem um alemão.
Esta explicação era necessária, porque o Tozé já cá não está. São palavras, claro, de uma filha (que ele se gabava de ter criado como uma «criança experimental» e de quem se orgulhava de ser a sua mais implacável critica. Não é totalmente verdade: politicamente estávamos de acordo).

Mafalda